terpsicore

pela divulgação e crítica da arte transdisciplinar do Movimento.


Aviso prévio: a fruição deste pequeno artigo, é mais bem servida com a leitura prévia do press-release da A Imagem da Melancolia, preferencialmente acompanhada por um tinto.. Douro ou Alentejo.

O ciclo de oito concertos da A Imagem da Melancolia, vulgo aIdM, com "O Consort Português Mal Temperado" começou neste 29 de Fevereiro em Aveiro e terminou hoje no Porto, inserido numa das fases do ambicioso projecto dirigido por Pedro Sousa e Silva, ao abrigo da nova Direcção Geral das Artes. A felicitar desde já a escolha do receptáculo acústico, de indescritível beleza auditiva e visual. A Igreja de S. João da Foz "tem uma boa acústica", o que quer dizer que nela o som parece emanar daquele lugar de transepto onde estava a ser produzida, tornando o espaço - e não os músicos - o último difusor e ampliador do som: claro, definido e detalhado. 1)

1 - Flauta "de bisel" ?...
Já ouvi falarem da flauta direita, gaita, pífaro...a família das flautas doces fica definitivamente consolidada, apresentada, definida, mostrando-se ao mais alto nível instrumental. E aqui dois níveis: a apresentação como instrumento de concerto, de fruição musical, de comunicação de sentimentos (?), distinta da comunicação de conteúdos de carácter didáctico-pedagógico, no qual muitos encerram o seu valor; e a apresentação como instrumento de conjunto, capaz de se integrar em agrupamentos formados por mais do que ele próprio no narcisismo da sua audição solista, consolidando assim uma massa sonora de um quase incomparável nível musical. As questões de afinação, fazem toda a diferença, como diria o mestre Pedro, dos anjos para a tortura.

2 - "A Flauta de bisel não é um órgão"
A flauta de bisel, com o seu consort mal temperado, é muito mais do que um órgão. E aqui, novamente nas palavras do mestre, embora um órgão não seja mais do que um conjunto de flautas, de diferentes tubos, à flauta acresce o grande poder da desmultiplicação. Se no órgão, cada tubo é uma nota, na flauta, cada flautista domina várias notas sucessivamente, acrescendo a dinâmica (uma nota no órgão não tem variação na pressão do ar) e a articulação (uma nota no órgão tem sempre a mesma expressão no ataque). Não imagino que o órgão criasse melhor imagem que aquela proposta pela aIdM na Batalha de Pedro de Araújo. Não consigo também explicar a emoção sentida naquele primeiro acorde do Primeiro Tom.

3 - A flauta "transversal" é muito mais bonita do que a flauta "direita".
Desenganem-se. Para isso recomendo a visualização deste espectáculo (agora, não sei bem para quando?) O movimento de um flautista de bisel consegue ser muito mais sedutor do que um flautista transversal. Aliás, toda a postura e movimentação são fundamentais para qualquer instrumentista de sopro, que escapou à ditadura de outros instrumentos como o piano: "Não te mexas!!!" Eu sempre pensei que na flauta de bisel, mesmo assim, estes se confinavam a movimentos ondulantes transversais e verticais, mas com o torso paralelo e recto. Os diferentes tamanhos de tubo, associados a frequências mais graves e agudas, geram uma infindável fonte de exploração para o movimento. A sensualidade de Susanna Borsch com o seu ondeggiare oblíquo, a presença e fascinante postura de Marco Magalhães perante o seu grande baixo, os movimentos suspensivos de inicio de tom de Pedro Sousa e Silva, a discreta digitação por detrás do virtuosismo do baixo de Paulo Gonzales..À exacta coordenação auditiva na digitação, articulação, a 2, 4 ou 8 elementos, contrapõe-se uma inesgotável fonte de códigos de movimento....de expressão individual.

Não consigo evidenciar em paradigma a questão da autenticidade, que não é senão o mote de reflexão deste programa. Todas as críticas que poderão persistir à fruição deste concerto ultrapassam a técnica 2) (inquestionável) e o conhecimento (a tradução inédita de um tratado do séc. XVII, encontrado na Biblioteca Municipal de Braga com o número 964?). Estão então onde? Onde está a crítica? Será na atitude? Anacronismo versus Contemporaneidade? Tive em tempos um amigo que me dizia que não prescrutava o interesse em assistir a concertos que se reportassem a algo que não fosse escrito nos dias de hoje...3) Sempre tive grande dificuldade em lhe responder com argumentos, a algo que apenas sentia. Mas a resposta é simples: A Música que Hoje se escreve, já é passado Amanhã. Logo, toda a acção musical é por si, histórica. O Tempo aqui.....é relativo. O que é isso do..."ser contemporâneo"? Não queremos ser contra a contemporaneidade..não queremos ser uma SCA, na sua estranha pretensão do "How the Middle Ages should have been?"4) Esta relação é ainda mais óbvia quando comparando com Arquitectura:
Que arquitecto, no seu pleno juízo, intervém num edifício do século XVII, com materiais, sistemas e linguagens do séc. XVII?
A primeira é impossível e as últimas, falaciosas. A intervenção no património histórico é por si, um acto de contemporaneidade. Os elementos estão evidenciados, como descreve o mestre Pedro: a descontextualização espacial do momento musical (não existia nessa altura o conceito de "concerto"), a liberdade na interpretação (usando flautas que recriam um momento histórico posterior à sua existência histórica) e no conceito (reportório provavelmente para tecla, interpretado por um consort de flautas). O trabalho da A Imagem da Melancolia não é um trabalho de restauro, mas sim uma reabilitação arquitectónica do património auditivo...português.

Parabéns a Pedro Sousa Silva pelo rigor do Conceito e Parabéns a toda a aIdM pela Paixão e Sentimento. Pela força nesta esgotante maratona. Por nos terem trazido um momento de purga da alma, de lavagem mental, transportando-nos, ainda que por breves instantes, para um outro Mundo.

Notas:
1) Não sei se seria do lugar de onde me apresentava, (5ª fila talvez), mas as frequências mais baixas não tinham a reverberação que esperava, comparando por exemplo com a apresentação de Aveiro, no Museu da Cidade, (espaço com configuração espacial com muito menor volume de ar). Claro uma reverberação exagerada prejudicaria a definição musical;
2) A afinação é o âmago técnico e o desafio para esta instrumentação de sopros a 8-9 vozes. Após uma rodagem de reportório extensiva, a simbiose entre os diversos elementos era notória e a afinação irrepreensível aos meus ouvidos;
3) Um grande pormenor, é que ele é arquitecto;
4) Para saber mais sobre a SCA, Society for Creative Anachronism, ler o artigo publicado anteriormente sobre Fabritio Caroso;

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