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pela divulgação e crítica da arte transdisciplinar do Movimento.




Findou a semana passada em Lisboa, a 2ª edição do Curso de Encenação de Ópera, inserida no Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística. Na noite do dia 29, têve lugar na Sala Polivalente da Fundação Calouste Gulbenkian, a apresentação de dois dos trabalhos. Em cena estiveram as peças de génese histórica mais antigas:"Agrippina Condota a Morire", (1707-1708) de G. F.Haendel e "Il Combattimento di Tancredi e Clorinda" (1624) de C. Monteverdi.

O género cantata, da primeira peça, onde a voz solista é acompanhada por um ensemble de cordas, é tido mais como uma cena extraída de uma ópera, do que propriamente uma "ópera" e chama para si todo um nível mais intimista, longe do buliço das peças apresentadas nos grandes teatros. Já a segunda peça, como madrigal, abraça o género de uma composição musical escrita sobre um poema. Neste caso, a obra insere-se no 8º livro de madrigais de Monteverdi, sob o nome, Madrigali guerrieri et amorosi. A ênfase dramática do texto - extraído da epopeia Gerusalemme liberata, de Tasso - aproxima-a mais do género audiovisual em questão. 1) E nestes dois momentos-génese da ópera, duas abordagens opostas:

Cen(a)-ografia versus En-cena-ção

"Cena: Termo proveniente do grego “skêné” referente à tenda onde os actores trocavam de máscara ou de roupa e que actualmente corresponde ao teatro e aos locais destinados aos actores. Cena provém também do latim scena ou scaena a que correspondem hoje as palavras referentes ao meio teatral (teatro, arte dramática, espectáculo, actor)." 2)

Porque - quantas vezes por dislexia mental freudiana? - proferimos cenografia em vez de encenação? Embora possuam a mesma génese etimológica, dela derivam dois conceitos opostos. Em traços rudes poderíamos talvez dizer que, enquanto uma se apresenta como arte que domina o espaço, a segunda seria a arte que domina o movimento..o Tempo?

"A encenação consiste numa apresentação, numa leitura possível entre outras, num ponto de vista particular, neste caso do encenador, não negando mas participando da multiplicidade do sentido. É uma arte complexa e difícil porque trabalha com os homens e as coisas (colectiva ou isoladamente), evocando tanto o aspecto ou os caracteres físicos dos seus variados elementos, como o seu papel moral, o seu toque pessoal e especial no conjunto definido e harmonioso da acção.(...) Por outro lado, ao transformar em espectáculo um texto escrito, a encenação transpõe todo um mundo de imagens conceptuais para recrear forma, movimento, som e cor."2)

Se por um lado, em Agrippina, temos a ênfase no Espaço, no estático, na cenografia, dada a espectacularidade da cena montada em redor da solista, em Il Combattimento, temos a ênfase no Tempo, na acção, encenação, em torno dos dois guerrieri amorosi. Então primeiramente diria:

Parabéns a Pedro Ribeiro pela concepção do Espaço e parabéns a Catarina Costa e Silva pela concepção do movimento! 3)

Movimento versus Movimento

Num primeiro sentir, constatamos então que em Agrippina é o valor do estático, na valorização do espaço. Em Il Combattimento, o movimento. Mas são as duas obras, de valores diferentes, resultado de movimento! O movimento da luz e cõr de Pedro, contra o movimento dos corpos de Catarina:

"O corpo, vivo e móvel, do actor é o representante do movimento no espaço. O seu appel é, portanto, capital. (,,,) O corpo não é apenas móvel, é plástico também. Esta plasticidade coloca-o em relação directa com a arquitectura" (...) Esta arte da arquitectura, em contacto estreitamente orgânico com o corpo humano, não existindo, até, senão para ele, desenvolve-se no espaço; sem a presença do corpo, permanece muda. A arte do espaço por excelência, é concebida pela mobilidade do ser vivo." 4)

Não deixamos por isso de constatar, com um matreiro sorriso interno, que a ópera, enquanto manifestação teatral...é acima de tudo movimento. "Ora nós vimos que o movimento é o princípio conciliatório capaz de unir formalmente o espaço e o tempo. A arquitectura é, portanto, uma arte que contém, em potência, o tempo e o espaço." 4)

Por isso agora digo:

Parabéns a Pedro Ribeiro pelo movimento da luz e côr..e Parabéns a Catarina Costa e Silva pelo movimento dos corpos!

Sendo este um espaço de reflexão artística com enfoque na Dança, uma congratulação especial ao Il Combattimento, pela ousadia deste Movimento:

Ao Movimento dos corpos. A mímica da acção através dos cantores é indicada por Monteverdi, mas todo o trabalho de movimento feito ousa a fronteira desta mímica, entrando no trabalho coreográfico, que habitualmente vemos com bailarinos.

Ao Movimento da "4ª parede" de Appia. Voltando os seus intérpretes de costas, oblíquos, de frente para o público, sem qualquer vontade de reconstrução clássica do teatro, num claro gesto de contemporaneidade.

Ao Movimento dos sons. A fantástica composição de Monteverdi no stilo concitato (excitado), eximiamente adaptada por Ana Mafalda Castro (direcção musical) com a aliteração musical dos sopros e cordas numa harmoniosa dupla combatente e combativa, que detalhou a sensação de movimento. 5)

"A arte do teatro não é nem a representação dos actores, nem a peça, nem a encenação, nem a dança; é constituída pelos elementos que a compõem: pelo gesto, que é a alma da representação; pelas palavras, que são o corpo da peça; pelas linhas e pelas cores que são a própria existência do cenário; pelo ritmo, que é a essência da dança." 6)

Parabéns aos dois pela ousadia de encenar duas obras temporalmente anteriores à existência da própria figura de encenador, enquanto maestro. Todo o trabalho de encenação é em si, um bravo exercício de contemporaneidade.

"Ora uma obra de arte não pode ser criada senão for dirigida por um pensamento único" 6)

E muito mais se escreveria sobre esta ode ao movimento, que foi a noite passada de quinta-feira. Mas a vontade de comunicar, torna (um pouco) mais célere este processo de escrita. Para quando a incursão guerreira às terras nortenhas?
Cá vos aguardamos!

Ficha Técnica:

"Agrippina Condota a Morire" de G. F.Haendel

Encenação, cenografia e figurinos:
Pedro Ribeiro

Direcção musical
Ana Mafalda Castro

Soprano
Catherine Rey

Músicos
Ana Mafalda Castro (cravo)
Sabela Fonte (violino)
Miriam Macaia (violino)
Isabel Figueroa (violoncelo)
Hugo Sanches (teorba e alaúde)

Desenho de luz
Paulo Graça

"Il Combattimento di Tancredi e Clorinda" de C. Monteverdi.

Encenação
Catarina Costa e Silva

Direcção musical
Ana Mafalda Castro

Testo
Fernando Guimarães

Tancredi
Miguel Leitão

Clorinda
Lucinda Gerhardt

Músicos
Ana Mafalda Castro (cravo)
Sabela Fonte (violino)
Miriam Macaia (violino)
Sara Ruiz (viola)
Isabel Figueroa (violoncelo)
Daniela Carvalho (flauta de bisel)
Tiago Simas Freire (flauta de bisel)
Hugo Sanches (teorba e alaúde)

Cenografia
David Silva

Desenho de luz
Paulo Graça

1) Toda a informação sobre as obras foi adquirida em GROUT, Donald J. et Palisca, Claude V., "História da Música Ocidental", 1988, edições Gradiva

2) CEIA,Carlos, (coord.) "E-Dicionário de Termos Literários", http://www.fcsh.unl.pt/edt

3) Obrigada, Pedro, por teres num primeiro olhar, referido esta oposição tão bonita nos dois trabalhos: o enfoque no espaço contra o enfoque dos intérpretes.

4) APPIA, Adolphe, "A obra de arte viva", cit. por GUIMARÃES, Isabel Maria Soares, "Do Espaço da Dramaturgia à Dramaturgia do Espaço", Prova final para Licenciatura em Arquitectura, FAUP 2003/2004

5) Fica apenas uma curiosidade...Como encaixar, em todo este processo "en-cenográfico", a motivação para a colocação dos músicos - nas duas obras - por defeito, à esquerda? A esquerda é de facto o lado dos "affeti"...

6) CRAIG, Edward Gordon "Da arte do teatro", cit. por ibidem

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